“Sonhei tanto contigo que tu perdes tua realidade”, diz Robert Desnos, no início do que talvez tenha se tornado seu poema mais conhecido. Não é à toa que a confissão alcançou muitas bocas e línguas: de algum modo, nós nos identificamos com isto de amar alguém até o delírio, de ultrapassar a divisa do sonho, da vertigem. O verso aqui toca em nossas entregas e feridas mais constitutivas, muitas das quais inclusive sentimos quase escaparem à linguagem. É nessa região de desterro, tateando modos de dar voz a uma perda, que se ergue este Todos os poemas que escrevi pro amor perdido de Raquel Schaedler. “Dar voz”, quero dizer, no sentido de circunscrever a ausência com o que resta daquilo que foi presença. Às vezes vem em eco, essa voz; surge “sem fundo”, tal como a própria saudade. Outras, chega com a força das preces, numa tentativa de “emancipar as palavras foragidas desde uma partida”. Há ainda horas em que nem sequer se sustém; antes vacila, entre “qualquer suspiro/grito/qualquer possibilidade/de ter vivido”. No esteio de uma perda que se repõe a todo instante, que se atualiza no poema como rito de dar nome ao deserto de amar sem o amado, Schaedler traz neste livro um testemunho delicadíssimo do “silêncio que se inscreve no corpo”. Para isso, não teme ir de regresso à vida que não viveu, não se furta aos dias em que é preciso olhá-la nos olhos e assumir a dor da suspeita em aberto: “sabe-se lá a falta que o que não conhecemos nos faz”. Todos os poemas que escrevi pro amor perdido constrói palavra a palavra uma escola íntima sobre como vigiar o fogo de uma ausência. Porque, sim, é preciso educar-se para “embalar o sono” desse que se foi, é preciso descobrir como “ser um fantasma entre fantasmas” (diz Desnos), como “ouvir o canto no calar da noite” (diz Schaedler). Uma vida é feita afinal de tantas mortes, “é preciso partir tantas vezes”. Que não haja recuos, portanto. E que aprendamos que vale mais a pena trazer pouca bagagem. Mar Becker